De graça, até opinião sobre o ato de escrever

Betty Vibranovski

Nesta postagem, M. Hatank, cujo livro de estreia, “Ypy”, tive o prazer de revisar, fala sobre o processo de escrita de um romance.

Por M. Hatank

Dizem que todo brasileiro é um técnico de futebol. Eu acrescento que alguns brasileiros têm opinião sobre o processo de escrever. Eu sou um deles. Veja bem que eu não falo em dar conselhos ou sugestões, algo que não tenho condição de fornecer, mas apenas em compartilhar com outros amantes amadores das letras algumas opiniões pessoais sobre essa arte que nos encanta a todos.

Começo dizendo que uma boa forma de criticar uma atitude é simplesmente dissecá-la em público, em vez de tecer comentários negativos a seu respeito. Meu avô costumava dizer que dois substantivos bem empregados podem ser mais eficazes do que dez adjetivos em grau superlativo. O grande problema desse tipo de crítica é que ela precisa ser muito bem trabalhada, e você terá de construir uma cena que leve o leitor a pensar como você, o que não é fácil. Como bem ensinam as aulas de retórica, é mais fácil persuadir com um porrete do que convencer com o gogó.

Nunca tente transpor para outras épocas valores do presente, nem para a sociedade atual valores que são apenas teus ou de uma minoria. Veja, por exemplo, a questão do racismo. Você seguramente se lembra do antológico capítulo “O Vergalho” em Memórias Póstumas de Brás Cubas, no qual o escravo alforriado Prudêncio chicoteia na rua um escravo que ele mesmo comprara. Imagine agora que você tem de escrever uma cena semelhante que se passa no início do século XXI. Nessa cena, um patrão negro e rico está dando um esporro em seu empregado negro, pobre e alcoólatra na frente dos colegas de trabalho. Nesse instante, entra na sala um senhor branco e rico, que pagou os estudos do patrão negro, que era filho da empregada dele. Qual será a melhor maneira de criticar a nossa sociedade?

Você pode colocar palavras de revolta na boca do alcoólatra, que é uma vítima da sociedade, e mostrar também o apoio que ele recebe de um colega de trabalho com mais consciência social, que se revolta contra o patrão. Depois de mais algumas ofensas do chefe, o alcoólatra parte para cima do patrão, mas é contido pela turma do deixa-disso. O patrão logo se arrepende da injustiça que está cometendo com outro negro, não sem antes se recusar a apertar a mão estendida pelo homem branco, que vira a cara e diz: “Vocês crioulos são todos iguais, e é por isso que jamais permitirei que minha filha se case com um negro”.

Outra maneira seria mostrar o bêbado, que realmente é um funcionário medíocre, estoicamente aceitando a humilhação, já que tem contas a pagar e precisa comprar remédio para o filho doente. Os outros funcionários não dizem nada porque temem perder o emprego (não estamos numa repartição pública, mas numa empresa privada). O patrão que está dando o esporro, por sua vez, age como um desses arrivistas prepotentes que gostam de exibir sua riqueza recém-adquirida com carros e relógios caros. E o senhor branco que narra o que aconteceu mostra-se um insensível, sobretudo quando ele aparece com uma explicação superficial para a atitude do patrão, que seria a de que basta dar um pouco de dinheiro e poder para as pessoas para que elas mostrem quem realmente são. Pergunto eu então: qual cenário é mais fiel à nossa realidade? Qual cenário pode levar um leitor a refletir sobre questões que nos afligem?

Infelizmente, o mundo não é como nós gostaríamos que fosse, e um erro comum é criar um mundo falso em vez de pintar o real. A melhor maneira de tentar mudar o feio mundo lá fora é realmente enfiando o dedo na ferida, e não distorcendo a realidade.

Tenha em mente que o panfletário engajado é antes de tudo um chato, como costumam ser os recalcados, os mal-amados e os malresolvidos de modo geral. O panfletário também costuma ser monotemático e frequentemente só enxerga o mundo através da ótica de sua obsessão, que ele identifica em todos os lugares e pessoas. Outra característica desse tipo de gente é a falta de senso de humor, especialmente se sua causa sagrada for o objeto da piada. Resumindo: o panfletário é como aquele sujeito inconveniente no churrasco do fim de semana, que antes da segunda cerveja já criou um climão com algum convidado. Contenha então a tua sanha proselitista quando estiver com o espeto e a caneta na mão. Você pode ser de direita ou de esquerda, e mostrar todo o horror de sistemas que trazem à tona o que há de pior no ser humano, mas faça isso como Rubachov e Urania Cabral fizeram em O Zero e o Infinito e A Festa do Chibo, e não com palavras de ordem e slogans.

Crítica política, social e de costumes pode e deve ser feita, mas sempre a partir do indivíduo, do contrário o teu livro vira tese de sociologia ou ciência política. Sistemas exploram, oprimem e matam, mas são seres humanos que criam, manejam e padecem sob esses sistemas. A verdadeira literatura só tem um tema: o ser humano, que não mudou muito nos últimos milhares de anos, como se percebe até pelo vocabulário. Em grego antigo e latim não temos palavra para televisão ou automóvel, mas temos para amor, inveja, esperança, cobiça e todo o resto de nossas emoções. É por isso que, ao falarmos de nossa aldeia, isto é, da gente da nossa aldeia, falamos do mundo.

Procure ser tão claro e didático quanto possível. A clareza é importante por um motivo óbvio: quando você escreve algo, você quer que o leitor entenda o que você quis dizer. Pouca gente se dá conta disso, mas escrever de maneira clara exige coragem porque não dá para esconder as incongruências e falhas da mensagem por trás de uma cortina de palavras.

Escrever com clareza, no entanto, não significa que você deve expor tua mensagem de maneira burocrática e absolutamente fiel à realidade o tempo todo. Admirar e buscar o belo, esse conceito tão subjetivo e mutante, é um dos traços que nos definem como humanos e nos separam do resto da fauna que habita o planeta. Você pode fazer com a realidade o que Monet fez com nenúfares e o que Klimt fez com Adele Bloch-Bauer. Pode fazer um céu estrelado hipnotizante como Van Gogh e criar um mundo onírico como o de Marc Chagall. Voltando à “releitura de Prudêncio”, você pode até trazer o Zumbi dos Palmares e o Olodum para a cena, nos levar para um passeio aéreo sobre o canavial de um engenho e ainda vestir o branco insensível com uma roupa da Ku Klux Klan, só que precisará trabalhar bastante a cena para poder tocar o leitor. E essa dificuldade será ainda maior se você descrever o que se passou com longas frases do tamanho de páginas, sem pontuação alguma e recheadas de neologismos e gírias desconhecidas.

Friso a importância da clareza por uma razão frequentemente esquecida: o pintor mostra sua realidade diretamente ao público, mas o escritor só pode descrever a dele. Tenha sempre em mente que o escritor é acima de tudo – ou simplesmente – um contador de histórias. Tarsila do Amaral poderia te pegar pela mão e apontar o Abaporu na parede, mas Oswald de Andrade precisaria transmitir aos amigos, sem que eles vissem, o cacto, o sol, a cabeça pequena e o pé enorme. É essa a diferença entre os retirantes de Portinari e a família retratada por Graciliano Ramos em Vidas Secas.

Veja bem, você poderá até narrar de tal maneira que a narração se desprenda do que foi narrado e adquira vida própria. Não há nada de mais nisso. Existe a arte pela arte e o belo pela beleza, só que aí você abdica de alguma coisa. Se você transpuser um Pollock ou um parangolé do Hélio Oiticica para um livro, poderá criar algo muito interessante, mas será incompreensível e poderá no máximo despertar uma sensação no leitor. Há que se ter muito cuidado quando se pula do tangível ao onírico. Se você é incapaz de decifrar os próprios sonhos, não espere que os outros o façam. Mal comparando, eu diria que um livro pode chegar ao impressionismo ou mesmo ao cubismo, mas quando você começa a jogar baldes de palavras em páginas em branco você deixa de ser um contador de histórias.

Gostaria também de dizer que na faculdade tive um professor de literatura que costumava lamentar a inexistência de um ponto de ironia, que seria útil para que nós alunos entendêssemos direito o que líamos. Hoje percebo que ele estava sendo irônico ao dizer aquilo e que o tal ponto de ironia seria tão inútil quanto um ponto de piada, cujo emprego jamais teria a capacidade de nos fazer rir de uma anedota mal contada.

Digo isso para que você não desanime caso o leitor não ria das tuas piadas e ainda te acuse de racista pela descrição da briga do patrão com o empregado alcoólatra. Caso isso ocorra, das duas, uma: ou você não soube escrever e deveria tentar a sorte em outra atividade, ou o problema está em quem lê livros como um robô processa instruções de programas, isto é, atendo-se unicamente ao sentido literal da palavra, sem pensar ou sentir. Infelizmente, sempre haverá aquela minoria convencida de que um autor mulato que conta o episódio envolvendo Prudêncio com tanta naturalidade e sem demonstrar um pingo de indignação só podia ser conivente com aquilo tudo.

Acho melhor parar por aqui. O texto já está muito longo e todos têm muito o que fazer. Caso você tenha interesse em saber se essas ideias funcionam na prática, te convido a conhecer a curta e interessante história de um sujeito que foi de Maragogipe a Salvador atrás de um emprego, que você encontra aqui pelo preço de dois cafezinhos.

Um abraço do M. Hatank