Comida de mãe – Herança, passado e futuro

Por Rita Turner
Coluna Culinariando

O texto de hoje é inspirado em duas comemorações desse mês: o Dia das Mães e o Dia do Português como Língua de Herança. Acontece também a III Conferência Sobre o Ensino, Promoção e Manutenção do PLH com o tema “Quais são as heranças dessa herança?”.

Pensando nisso, gostaria de falar sobre a comida da mamãe – tanto como herança recebida (quais são as suas memórias?) e como herança a ser passada (que lembranças vamos deixar para nossos brasileirinhos?).

Primeiramente, vamos deixar duas coisas bem claras: comida de mãe não precisa ter ligação com a mãe.

Quando digo “comida de mãe” me refiro à comida feita por uma pessoa querida e com uma certa frequência. Aquela que nos traz boas lembranças. Pode ser de mãe, pai, avós, tios, tias, a empregada que era “praticamente da família” – dá pra entender, né?

O segundo esclarecimento é que “comida de mãe” não precisa ser feita em casa ou ser elaborada.

Gosto de fazer esse esclarecimento pois muitos de nós não somos habilidosos na cozinha, o que não quer dizer que não podemos criar momentos de “comidinha de mãe”. Sua versão de comidinha de mãe (ou pai, etc) não precisa ser um prato Master Chef.

Um pãozinho com manteiga dividido na mesa da cozinha, um chá feito com amor e servido na canequinha favorita, a fruta madura, descascada e partida na medida certa – tudo isso conta. O importante é o ritual, é cavar espaço na rotina da casa para sentar e fazer uma refeição com nossos brasileirinhos, acompanhada de uma boa conversa, de conhecimento mútuo. Essa é a herança que vai ficar na memória.

Cada um tem sua definição de “comidinha da mamãe”. Pode ser aquela sopinha que você tomava quando estava doente, pode ser o arroz-feijão diário (ao som do apito da panela de pressão), o bolo da tarde ou a sobremesa de domingo. Não importa, na verdade o que caracteriza um prato ou comida como “comidinha de mãe” tem muito menos a ver com os temperos e ingredientes e mais com o seu contexto emotivo, ou seja, tudo aquilo que a gente lembra, que vem à memória quando nos deparamos com tal comida.

Os americanos, especialistas em criar expressões com palavras que a princícipio não combinam, usam o termo “comfort food” para descrever a comida reconfortante, no sentido afetivo e quase sempre ligado à infância. Minha própria experiência é prova disso.

Tenho uma ligação afetiva muito pessoal com vários pratos e comidas, fortes e boas recordações de comidinhas de mãe, mas minha mãe nunca foi necessariamente uma “cozinheira de mão cheia”. Pelo contrário, como ela mesmo diz com certo orgulho feminista: “nunca fiz um bolo na vida”. Mas ela tem seus créditos.

Já falei aqui da sopa de legumes que ela fazia para mim e que até hoje me traz as mais tenras lembranças. O ato de sentar à mesa e provar algo que alguém que amamos fez para nós, com amor, é algo muito poderoso. Por isso que canja “faz bem”.

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A macarronada de domingo
Domingo era dia de macarronada na minha casa, peito de frango assado e muito, mas muito queijo parmesão (comprado fresco, na manhã, no mercado municipal). Mesmo não comendo frango hoje em dia, as lembranças desses domingos são muito queridas.

Eu me lembro da pia cheia de panelas para lavar depois do almoço (justamente quando todos estávamos em coma de macarrão), da assadeira com os peitos de frango, sem pele, sem osso, dourados e perfumados. Da disputa para quem ia escolher o tipo de massa – a minha favorita era (e ainda é) o bucatini, quele macarrão comprido furado no meio, que faz uma bagunça só quando misturado com molho.

Porém, a herança que eu mais aprecio hoje é justamente o ritual do comer em família, de sentar à mesa (sempre forrada com toalha), de ficar e conversar, muito após o fim da sobremesa. “Essa é a melhor parte da refeição”, minha mãe sempre repetia.

Esse esquema de se estender à mesa muitas vezes conflitava com minha agenda social de adolescente popular, mas hoje eu agradeço muito ter tido esses momentos em família. Tinha de tudo: piada de irmãos, discussões políticas, histórias de família, final de novela, opiniões, divergências, enfim, a mesa da cozinha era o scenário de um aprendizado mútuo de empatia, tolerância, amizade e amor.

Heranças na corda bamba
Essa é a minha herança, recebida e muito estimada. A questão agora é: como passá-la para frente?

Estou fazendo o suficiente para honrar minha herança e ao mesmo tempo criar oportunidade de novas lembranças para minha própria filha? É difícil.

Às vezes tenho a impressão de que o “suficiente” é uma daquelas metas que vai se distanciando conforme vamos ao seu encontro – uma ilusão de ótica. Então, vamos vivendo nessa corda bamba, de um lado o que passou, do outro o que há por vir, verdadeiros bêbados equilibristas, embriagados pela ilusão de tempo.

É necessário lembrar que o único lugar onde podemos atuar é no presente. É nele que devemos achar uma brecha para inserir um pouco do passado, para que esse possa fazer parte do futuro.

O convite fica, então, aos queridos leitores dessa coluna: pense na sua herança recebida, no que ela representa para você hoje, e qual a influência no seu crescimento humano. Agora pergunte-se: o que você gostaria que o seu brasileirinho(a) recebesse de herança? Quanta importância (ou prioridade) você dá no seu dia a dia para fazer com que essa herança vire realidade? O trabalho é duro, o esforço é constante, porém, para a esperança equilibrista, nada é mais gratificante do que ver show continuar.

Rita Turner é correspondente de diversos blogs de culinária. Simpatizante do grande chef Alex Atala que costuma dizer que a comida é a maior rede social do mundo, Rita acredita na influência da cozinha na formação da identidade e a vê como um agente fundamental na preservação da cultura de um povo.

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