Uma língua inútil

Editorial
Por Felicia Jennings-Winterle
Plataforma Brasileirinhos, Editora

i-nú-til
1. Não útil; baldado.
2. Infrutuoso, vão, desnecessário.

ú-til
(latim utilis, -e)
1. Que é necessário; que tem préstimo ou utilidade; proveitoso; vantajoso.
2. Diz-se dos dias que não são feriados.

Há dois anos um jornal brasileiro publicou em sua página no Facebook uma nota sobre a criação do Dia do Português como Língua de Herança (16 de maio). Qual não foi nossa surpresa ao ler os comentários de diversos seguidores que diziam, entre outras idiotices, que admiravam-se de tal iniciativa por uma língua inútil e que, atitudes como essa, eram exatamente o que os faziam passar tanta vergonha no exterior.

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Exatamente o que eu pensei. Desde então, venho refletindo sobre a inutilidade de uma língua… pode uma língua ser inútil?

A língua é só um dos aspectos que definem um indivíduo, uma comunidade ou uma nação. É talvez um dos elementos identitários mais visíveis, junto com a culinária de uma cultura e a cor dos olhos, da pele ou dos cabelos de uma pessoa. Comunica uma porção de outros aspectos invisíveis – o jeito de ser, de pensar, de observar leis, de tratar as pessoas e o meio-ambiente, de trabalhar em grupo, de criticar, de brincar, de aprender, de crescer.

É por isso que, ao falar sobre língua, estamos na verdade falando sobre quem somos. E, arrisco dizer: se consideramos nossa língua uma língua inútil… (para bom entendedor, meia palavra basta).

Uma rápida pesquisa no nosso grande amigo Google revela que a língua portuguesa, oficial em 9 países, é a 6a mais falada no mundo, por cerca de 260 milhões de pessoas (esse número varia muito). De acordo com o site Socialbakers essa língua inútil é a 3a mais usada no Facebook, a maior das redes sociais.

Nossa língua é tão inútil que seu ensino só cresce em todo o mundo. Apesar da queda na popularidade do Brasil, este (pasmem!) não é o único país que fala essa língua e (pasmem mais ainda!) a situação econômica/política do Brasil não é o único motivo pelo qual se aprende/ensina esse idioma.

Daria para falarmos de inúmeras estatísticas que colocam nossa língua inútil em pontos de destaque, mas não farei isso. Prefiro destacar a modalidade de ensino/promoção para as gerações que nascem e crescem em países de outras línguas.

À esse contexto acopla-se diferentes nomes e abreviações, o que acaba revelando uma certa desarticulação entre seus pesquisadores e educadores, característica de um movimento que ainda desenha-se. Por aqui, chamamos essa área de estudos de Português como Língua de Herança (PLH).

Sua inutilidade é, na realidade, um diferencial acadêmico. Para aqueles que desejam usufruir dos inúmeros benefícios do bilinguismo, essa é uma forma “natural”, quase do tipo “faça você mesmo”, de educar um cidadão global. Nutrir o português em casa, como uma língua minoritária, resulta em uma vivência em pelo menos duas línguas, já que a sociedade se incumbe de inundar a rotina da criança com inputs na língua majoritária.

É também um diferencial social no que tange as relações, os modos de interação e de comunicação entre familiares, entre colegas (de escola, do trabalho, de uma mesma comunidade) e entre seres humanos como um todo. Já se sabe por inúmeros estudos que o bilinguismo molda a maneira de pensar, de raciocinar e de lidar com a diversidade.

Mas, para mim, a melhor das inutilidades dessa língua é a possibilidade que ela oferece de realização pessoal. A promoção do português como língua de herança tem sido uma ocupação formal ou informal para pelo menos 500 mulheres (há homens envolvidos também mas o foco hoje é nelas) que, ao redor do mundo, (re)desenham-se e (re)tornam-se educadoras em vários contextos.

Eu sou só uma delas. Passo o dia pesquisando, ensinando e construindo meios de fazer dessa inutilidade algo significativo, vantajoso e proveitoso.

Se no mês de maio temos 2 oportunidades para pensar sobre a (in)utilidade de uma língua – 5 de maio é Dia da Língua Portuguesa nos países de língua portuguesa e 16 de maio é Dia do Português como Língua de Herança – é porque língua nenhuma, muito menos a nossa, deve ser considerada desprezível. Aliás, a razão da criação do Dia do PLH é muito simples – celebrar essa especialidade de ensino/promoção linguístico-cultural e as iniciativas tão diversas que se propõem a disseminar esse legado.

Ao redor do mundo estimo existirem de 100 – 150 organizações que, com orçamentos ínfimos mas disposição hercúlea, fazem de tudo – de tudo mesmo – para provar como a língua portuguesa é útil, necessária e valiosa. A riqueza e a diversidade de nossa língua são vivenciadas em propostas de contação de histórias, trocas e empréstimo de livros, música, dança, teatro, alfabetização e através de festas tradicionais. O efervescer dessas iniciativas é visto nas Américas, na Europa, na Ásia, na Oceania e na África.

Porém, algo não me sai da mente. Você pode até ter discordado daqueles que definiram o português como uma língua inútil, mas, o quão útil tem sido essa língua para os seus filhos? Ou melhor, que vantagem poderão tirar desse legado quando crescerem? A herança que você está deixando para eles inclui uma língua útil ou uma “inútil”?

É sobre isso que convido você a pensar nesse mês.

Felicia é educadora e pesquisadora sobre o português como língua de herança. Fundadora da Brasil em Mente, é editora da Plataforma Brasileirinhos.

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